"Museus e Culturas como Espaços de Resistência" - Marilina Serra Pinto | Semana Nacional dos Museus 2020

Sobre o dia 18 de maio de 2020, quero falar de duas celebrações marcadas no calendário civil internacional: a primeira refere-se ao Dia Internacional dos Museus e a segunda ao Dia das Raças Indígenas da América. Museus, enquanto casas da memória e a vivência das populações indígenas, sobretudo as pan-americanas, possuem em comum, o fato de permanentemente serem repositórios vivos de conhecimentos e estarem renovando, valores, bens materiais e imateriais, sentidos, gostos e visões de mundo. Quero aqui compartilhar uma experiência que tive no Museu Magüta, localizado no município de Benjamim Constant, no Alto Rio Solimões, estado do Amazonas, pertencente à etnia Ticuna que circula entre a tríplice fronteira: Brasil, Colômbia e Peru.

No final dos anos 80 o Museu Magüta foi inaugurado em meio ao processo de demarcação dessas terras indígenas, ou seja, momento de forte mobilização política, o que serviu como instrumento de reafirmação da identidade étnica para a sociedade nacional. Desde sua criação o museu abraçou como funções de utilidade pública: instruir, educar, deleitar, ressignificar novos sentidos culturais que levem em conta o poder das imagens. Minha visita ao Museu, no ano de 2008, deveu-se à ministração de um curso, no formato de oficina  de Educação Patrimonial e Mitologia Amazônica, promovido pelo CEFORT – Centro de Formação Continuada para Professores da Rede Pública de Ensino da Universidade Federal do Amazonas; escolhemos enfocar a cultura Ticuna da zona fisiográfica Solimões-Javari, a fim de colocar  em prática o escopo do curso, na perspectiva de Lévi-Strauss,  que é a valorização dos traços mais arcaicos de nossa cultura, que indubitavelmente são os mais originais.

Passados 12 anos dessa experiência, tornada possível por meio de recursos públicos, na qual se buscou valorizar a diversidade cultural reconhecida como patrimônio material e imaterial do povo Ticuna e também como peça de um mosaico que compõe a identidade nacional brasileira e latino-americana, consideramos válido deixar aqui esse registro, em tempos de revisionismo histórico, terraplanismo e desprezo pela ciência, pela cultura e pela arte.   

Pesquisadora em um dos ambientes do Museu Magüta, no lado direito as máscaras e as roupas rituais 
confeccionadas de entrecascas, no lado esquerdo a   roda ritual. Fonte: Acervo pessoal, 2008


Graças às mudanças paradigmáticas na perspectiva museológica mundial e nas legislações renovadas, saberes, fazeres e oralidades adquiram o mesmo estatuto jurídico das obras eruditas, consagradas e monumentais. Nossa proposição foi fazer a leitura do acervo museal, sobretudo o etnográfico, buscando relacionar com os mitos. Cinco ambientes e mais uma pequena biblioteca dividem as instalações físicas do museu. As coleções são compostas por trabalhos de artistas indígenas especializados que confeccionam tanto trabalhos inéditos, como se ocupam na recuperação de artefatos em processo de desuso ou extinção reconstituídos a partir dos registros do etnólogo alemão Curt Nimuendaju, recolhidos na década de 40 no século passado.

Observamos que quanto à iconografia, a apresentação física do acervo promoveu o encontro da arte gráfica tradicional praticada pelos antigos e a arte produzida pelas gerações mais jovens que sofreram o processo de escolarização. Os objetos se dividem em três classes: os de uso cotidiano, os rituais e o artesanato, bastante apreciado pelos brancos, produzido para uso comercial. O nível de refinamento que se revela nas peças, tanto no aspecto do domínio das técnicas como no gosto estético, traduzem-se como bens materiais portadores de referências à identidade e à memória do grupo. Na arte Ticuna, que incluem a olaria, a tecelagem, a escultura, os desenhos, são bastantes apreciadas as figuras zooformas e antropomórficas confeccionadas com caroço de tucumã. Outro ponto de destaque são as pinturas faciais que indicam o pertencimento aos diferentes clãs existentes.

Pesquisadora na frente do Museu Magüta, em Benjamim Constant.
Fonte: Acervo pessoal, 2008.


A nominação do Povo Ticuna ou Magüta, que significa “povo pescado,” tem relação direta com o mito de origem da humanidade, cujos heróis primordiais Ipi e Yo’i protagonizam a narrativa. Ligado ao ritual de passagem feminino, o que torna a cultura Ticuna, sui generis, uma vez que habitualmente são festejadas na maioria dos casos, a passagem masculina para a  puberdade; o Ritual da Moça Nova, aparece representado no museu por meio das máscaras e das vestimentas de entrecasca, os bastões cerimoniais, os instrumentos musicais, os escudos,  as rodas rituais e o curral onde a menina fica reclusa no período da primeira menstruação. As máscaras de uso ritual se configuram como a manifestação artística mais expressiva da arte Ticuna.

Esses foram  alguns aspectos observados na nossa ida ao museu, ao final da Oficina de Educação Patrimonial muitos professores relataram que nunca tinham visitado o museu e muito menos imaginado que uma visita na casa de memória dos Ticuna pudesse trazer tantas possibilidades metodológicas de abordagem da cultura local para serem levados à sala de aula em todos os níveis do ensino, do  fundamental ao superior. Hoje assistimos um esforço das Ciências Humanas e da Natureza em recuperar sabedorias antigas, a fim de promover um diálogo do passado com o presente. Neste sentido, podemos afirmar que os museus também cumprem essa função social de guardiões e da resistência de culturas, sobretudo, de grupos sociais e minorias que se encontram seriamente ameaçados por um projeto de poder hegemônico androcêntrico, branco e capitalista.       

Em tempos de pandemia da Covid-19 somos convidados a repensar o lugar que ocupamos no circuito civilizatório de predação da natureza, se e quando passar essa onda de destruição, necessariamente, assistiremos o reposicionamento de todas as produções humanas da economia à religião. Mudanças de hábitos, gostos e comportamentos serão inevitáveis. O dia 18 de maio de 2020, o  que torna as datas comemorativas do Dia Internacional dos Museus e dos Indígenas Americanos melancólicos é  a ausência dos homens, seja pelo vazio de público nos museus em função do isolamento social imposto pelas autoridades sanitárias, seja pelas perdas de vidas que faziam a diferença pelo seu desempenho como atores sociais, como é o caso de artistas, cientistas, lideranças políticas e religiosas. 

Professor e Artista Aldenor Basques Félix Gutchichü da Comunidade Wotchimaücü, vitimado com suspeita de Covid -19. Fonte: https://amazoniareal.com.br/professor-tikuna-que-morreu-por-suspeita-de-covid-19-e-enterrado-em-vala-coletiva-em-manaus/ Acesso: 18 de maio de 2020. 


Para chamar atenção do processo de invisibilização e extermínio das culturas não-ocidentais, destaco a morte da vice-liderança ticuna, o Professor Aldenor Basques Félix Gutchichü da Comunidade Wotchimaücü, localizada no Bairro Cidade de Deus, em Manaus.  O falecimento ocorreu no último dia 28 de abril, de suspeita não confirmada da Covid-19, uma vez que ele não foi testado. O sepultamento de Aldenor, ocorreu em uma vala coletiva no Cemitério Municipal Nossa Senhora Aparecida. O fato marca a situação de penúria e desassistência pelo poder público na qual vivem os indígenas de várias etnias em contexto urbano na cidade de Manaus. A maioria da comunidade, cerca de 45 pessoas, que vivia da venda de artesanato, agora encontra-se doente. Aldenor, nascido na Aldeia Filadélfia em Benjamim Constant, no Alto Solimões, era professor da língua materna, pela rede pública de ensino, mas no momento encontrava-se desempregado. Além da sala de aula, atuava também como cantor e compositor de um grupo musical ticuna que fazia apresentações na cidade de Manaus. Coletivos humanos, assim como museus são edificações vivas de sistemas simbólicos. Esperamos a sensibilização da sociedade para mitigar os efeitos nefastos de mais um etnocídio chancelado pelas culturas dominantes.        

Aldenor, o primeiro da esquerda, junto aos integrantes do seu grupo musical paramentado com as pinturas faciais, adornos e vestuário decorado com a iconografia ticuna. Fonte: https://amazoniareal.com.br/professor-tikuna-que-morreu-por-suspeita-de-covid-19-e-enterrado-em-vala-coletiva-em-manaus/ Acesso: 18 de maio de 2020. 

     

Marilina Serra Pinto
Pesquisadora e Professora
Universidade Federal do Amazonas




Os cidadãos amazonenses estão ocupando virtualmente o Blog Museus do Amazonas, na Semana Nacional dos Museus 2020, devido à pandemia Covid-19.

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