"Memórias (recentes) de minha atuação no Amazonas: palavras que esperam abraçar" - Saulo Moreno | Semana Nacional dos Museus 2020

Diferente do que se pensa no senso comum, memória não é coisa de passado, ou não somente, é antes de tudo um fenômeno multidimensional que articula diferentes temporalidades e, principalmente, tem no presente a sua força mobilizadora de exercícios de lembrança, mas também de esquecimentos. Tais aspectos são conhecidos por qualquer estudioso e pesquisador que se debruce minimamente sobre a questão. Fenômeno biopsicossocial, a memória é uma das marcas de nossa identidade como seres humanos e nos articula como sujeitos no mundo, ela é fundamental à nossa existência em sociedade e em nosso processo de formação e humanização.

Foto 1: Fachada do Museu Amazônico - UFAM.

Mas, o objetivo deste texto não é fazer divagações acerca da memória e sua importância, ou mesmo de produzir qualquer mapeamento sobre os estudos que a abordam. Modestamente, pretendo registrar algumas lembranças de minha breve e recente passagem pelo Amazonas e de minhas relações com seu campo museal, mais precisamente. Aos interessados nos estudos da memória e de sua centralidade para a História, a Museologia, o Patrimônio e os museus, sugiro uma breve busca na internet por trabalhos de autores seminais, como Ulpiano Bezerra de Meneses e Jacques Le Goff. Serão valiosas introduções aos desejosos por adentrar este mundo!

Como anunciei, meu objetivo é registrar algumas impressões e lembranças sobre o Amazonas, já que, durante quase dois anos, estive neste estado, em Manaus, atuando como museólogo. Sou, portanto, pertencente ao grupo de profissionais que constroem museus por dentro, que o vivem nos bastidores, com todos os seus dilemas, desafios e aprendizados. Mas, também sou público de museu, reconhecendo aqui a limitação de meu olhar, talvez um tanto apaixonado e tatuado por minha identidade profissional. Agradeço e parabenizo o Blog Museus do Amazonas pela ação digital durante a 18ª Semana Nacional de Museus, especialmente à persistência e luta da pesquisadora Rila Arruda em buscar manter-se constantemente em movimento a favor dos museus e do patrimônio.

Por sinal, Rila foi uma das primeiras pessoas que conheci, antes mesmo de chegar a Manaus. Em 2016, ainda no Rio, onde fazia meu mestrado em Museologia e Patrimônio na UNIRIO/MAST, vi em um site a divulgação de concurso para o cargo de museólogo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Apesar de baiano, minha formação acadêmica se deu entre Florianópolis (UFSC) e Rio de Janeiro (UNIRIO/MAST), portanto, bem distante do Norte do Brasil. Recém-formado (colei grau em 2016), a vontade de atuar e os vínculos precários que me atavam ao Rio me fizeram buscar logo uma possibilidade de inserção profissional.

Foto 2: Registro do meu primeiro dia de trabalho, na Reserva Técnica do Museu Amazônico.

Assim, o concurso da UFAM, em momento em que já vivenciávamos o desmonte das políticas de cultura, educação e ciência, despertou em mim a esperança de iniciar minha vida de museólogo em um contexto universitário. E, aqui, retorno à Rila, pois, após fazer o concurso e ser aprovado, comecei a buscar informações sobre meu futuro universo profissional, o Museu Amazônico (MA/UFAM). Foi através de algumas postagens dela e de Paulo Holanda nas redes sociais, além, claro, de algumas informações disponíveis nos canais do próprio museu, que comecei a me ambientar, ainda de longe, àquela instituição e a suas ações. Portanto, destaco com isso e congratulo a importância seminal do trabalho de Rila e de outros colegas, muitos hoje congregados pelo Movimento Abrace um Museu, em constituir uma força na sociedade civil que mobilize energias sociais a favor dos museus, de sua divulgação e potencialização junto à sociedade.

Pois bem, fui aprovado no concurso e junto com outro colega, Bernardo Costa, tomei posse na UFAM. Foi um momento incrível! A euforia que existia em mim logo aumentou após o primeiro contato com a diretora do museu à época, a professora Maria Helena Ortolan, antropóloga, que me abraçou na minha chegada e foi fator essencial para minha ambientação à instituição. Outros e outras também o foram, como veremos adiante.

Ao adentrar a sala da Divisão de Museologia do Museu Amazônico, situada no prédio anexo, naquela sexta-feira, 31 de março de 2017, não só estava exultante de alegria, afinal, como um jovem museólogo recém-formado, tudo aquilo era fascinante e desafiador. Mas, também fui tomado por memórias, especialmente ao ver os bastões cerimoniais Ticuna, pois, naquele momento tomava consciência de que minha relação com o MA remetia à 2012, nos meus primeiros dias de estudante de Museologia na UFSC. Naquele ano, pouco tempo após minha chegada à Floripa, em maio, pude acompanhar a abertura da exposição “Ticuna em dois tempos”, organizada pelo Instituto Brasil Plural (IBP) no Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral (MArquE/UFSC). A exposição, belíssima e exuberante, marcava a reinauguração do museu universitário e propunha um diálogo entre a coleção formada pelo antropólogo Sílvio Coelho dos Santos (pertencente ao MArquE) e a formada pelo artista Jair Jacqmont (pertencente ao MA).

Duas coleções, constituídas em momentos e com objetivos distintos, mas relativas ao mesmo povo, ao patrimônio do povo Ticuna, o maior grupo indígena da Amazônia brasileira. Cruzando olhares e perspectivas, apresentando um rico universo simbólico, fui ali capturado pela riqueza das culturas indígenas em suas múltiplas expressividades. Portanto, foi naquele momento que se deu meu primeiro contato com o MA, por meio de objetos de sua coleção que, anos depois, reencontraria em Manaus, boa parte na Reserva Técnica.

Assim que cheguei ao Museu Amazônico, como disse acima, fui acolhido por Maria Helena, mas também por todas as pessoas da equipe. A prof.ª e museóloga Regina Vasconcelos atuava como diretora de Museologia e foi uma importante amiga e parceira, compartilhando e tecendo comigo diálogos sobre os museus do Amazonas, especialmente sobre o Museu do Homem do Norte e o MA. Além disso, pude contar com o doce e afetivo abraço da bibliotecária Rosângela Martins, funcionária pública exemplar, dedicada, que nutre um amor profundo pelo acervo que salvaguarda na Biblioteca Setorial do Museu Amazônico e que foi central em minha experiência em Manaus, em muitos sentidos. Sem esquecer-me do querido Robson, sempre acolhedor!

Os desafios eram imensos e tínhamos muito que fazer. Além de mim, chegavam ao museu Thiago Morais, que se transformou num grande amigo e parceiro de sonhos, bem como Miquéias Melo e Fernanda Rodrigues atuando, respectivamente, nas Divisões de Difusão Cultural, Pesquisa e Documentação Histórica e Arqueologia. Formávamos um novo time, uma equipe disposta a fortalecer o museu embasado nas experiências anteriores, junto aos colegas que lá estavam e no legado de uma instituição com relevantes serviços prestados.

Foto 3:  Café da manhã de recepção aos novos servidores do Museu Amazônico, 2017.

De imediato, ao chegar, tive à minha frente o desafio compartilhado com outras colegas de apontar uma solução para a Coleção Thiago de Mello, adquirida há alguns anos pela UFAM, mas que ainda não havia encontrado efetivamente um tratamento e organização adequados. Assim, em reuniões com Célia Simonetti (à época diretora do Sistema de Bibliotecas), Maria Helena, Rosângela, Regina e Paulo Simonetti (CAUA), elaboramos as Diretrizes de Gestão da Coleção, momento em que optamos, após muita reflexão, pela fragmentação do conjunto entre diferentes unidades especializadas da UFAM, de modo a aproveitar e maximizar as expertises dos setores a favor da salvaguarda e comunicação da coleção. Assim, as artes visuais foram transferidas ao Centro de Artes (CAUA); na Divisão de Museologia do MA ficaram as fotografias, as condecorações, alguns objetos indígenas; na Divisão de Pesquisa e Documentação, uma parte significativa dos itens gráficos, incluindo cartas, manuscritos e outros. Na Biblioteca Setorial, toda a coleção bibliográfica. É um conjunto riquíssimo e precioso que, creio, com o tempo estará disponível à sociedade e fomentará inúmeros estudos e possibilidades de diálogos e produção de conhecimento.

Foto 4:  Equipe do Museu Amazônico em evento de apresentação pública da Coleção Thiago de Mello (da direita para a esquerda: Maria Helena, Regina, Bruno, Thiago, Mayara, Rosângela e Saulo).

As minhas memórias são muitas e, para um breve texto como este, não será possível abordar em mais detalhes as diversas ações que realizei e as muitas parcerias que estabeleci em quase dois anos de Museu Amazônico. Contudo, antes de finalizar, gostaria de registrar que a minha atuação só foi possível graças a atuações anteriores, de agentes que desbravaram espaços e com suas imaginações museais (CHAGAS, 2003) fizeram realidade o que era sonho, a construção de museus no Amazonas. E essa genealogia vai longe, no século XIX, com o Museu Botânico mantido por Barbosa Rodrigues e adentra o século XX, com a atuação central do artista Moacir Andrade, ainda nos anos 60, para a criação de iniciativas diversas, sem ignorar outras tantas experiências fundamentais (para tanto, recomendo a leitura do livro “Museus do Amazonas”, de Rila Arruda e Marilina Serra Pinto, de 2012, uma excelente introdução à história dos museus no Estado).

Não há aqui espaço suficiente para falar de tantas coisas e pessoas, mas quero registrar meu reconhecimento e agradecimento à Jane Cony (primeira museóloga do Museu Amazônico) que, por mais de duas décadas, foi responsável por abrir horizontes para a nossa atuação museológica posterior. Registro também meu agradecimento ao Custódio Rodrigues, que se fez conservador-restaurador no MA e com tanto zelo cuidava de nossas coleções. Também Carlos Augusto da Silva, nosso querido Tijolo, com quem tanto aprendi sobre Arqueologia Amazônica, um grande mestre, que trago em minhas memórias afetivas. Também Dysson Teles e Carolina Brandão, atual diretor e diretora de Difusão Cultural, pelos esforços que fazem há muito tempo pela valorização do museu, sem contar Wanderléia, nosso esteio na Administração, sempre zelosa e comprometida, bem como Adrianne, que fazia com que nossas vidas fossem mais tranquilas. E como esquecer o café saboroso e feito com tanto carinho por Dona Marlene? Em nome dela, que sempre alegrava os nossos dias com muita empolgação e carinho, agradeço a todos os trabalhadores terceirizados que atuavam e atuam no museu.

Karem e Lilia, ambas no Laboratório de Arqueologia do museu, realizam um trabalho dedicado e fundamental e me acolheram de forma generosa e afetuosa quando os caminhos da vida me fizeram sair da unidade central do MA e ir para o Campus da UFAM, no Coroado, para atuar com o acervo arqueológico. Com elas e Fernanda Rodrigues, tecemos e implementamos o projeto de requalificação da Sala de Exposição do Laboratório, batizando-a com o nome de Carlos Augusto da Silva, em homenagem ao grande pesquisador e arqueólogo de nossa universidade. Ainda na UFAM, não poderia deixar de registrar o valor de amigas e amigos como Roberta Paredes, Priscila Pinto e Orlane Freires (do curso de Artes Visuais), Leandro Aguiar (do curso de Arquivologia), Daniele Guimarães (Reitoria), Bruno Trece (Arquivista), Magela Ranciaro (Serviço Social) e tantos outros, a quem peço perdão pela omissão.

Foto 5: Equipe da exposição "Patrimônio Amazônicos revelados", 2017.

O percurso e os desafios se tornaram mais leves com a chegada de Mayara Monteiro, museóloga como eu que, vinda de Brasília, trazia o Norte no sangue e na vivacidade da sua existência. Com ela, vivi momentos de muita alegria, mas também partilhamos dores e angústias que marcam a nossa cumplicidade e amizade. Adotamos bebês lindos, Léo, Joaquim e Adelaide (gatinhos), e tecemos muitos sonhos, até que o destino nos separou, eu, agora em Fortaleza, ela, em Goiânia. Mas, apesar disso, o nosso amor permanece, abraçado por Norminha, sua mamãe que me tomou como um filho em seu imenso coração.

Neste tempo de atuação no Amazonas, tive a oportunidade de conhecer e estabelecer parcerias e diálogos com pessoas incríveis, a quem agradeço demais pelos ensinamentos, pelas trocas e pela vitalidade dos encontros que fizeram com que tudo fosse muito mais pulsante e emocionante. Katia, Liuba, Manu, Ângela, Marta, Yvonne, Fernanda, todas no Laboratório de Arqueologia, se tornaram amigas queridas e parceiras de uma linda empreitada, a exposição “Patrimônios Amazônicos Revelados”. Danyelle Vogel e Glenda Cooper, que aderiram ao nosso Programa de Voluntariado e atuaram diretamente comigo. Sem contar as inúmeras amizades, para além dos museus, que teci neste percurso e que não vou nomear, para evitar descuidos e para não me alongar ainda mais neste texto, que era para ser breve, mas que já está gigantesco.

Ao final, esta mensagem é bem mais um agradecimento, um abraço sincero naqueles e naquelas que persistem acreditando nos museus, na Museologia e no Patrimônio em um estado visto pelo restante do país como exótico, distante, ora marcado no imaginário social pela exuberância de sua natureza, ora pelas violências que diuturnamente levam Manaus às manchetes dos grandes jornais. Por sinal, foi no contexto pós-grandes rebeliões nos presídios de Manaus, em 2017, que cheguei à cidade, ainda tomada pelo medo. Lembro que os portões do museu viviam fechados, pelo temor que pairava.

Assim, geração após geração, com as mãos de cada um(a) daqueles que passam, dos que ficam e dos que se vão, vai se desenhando o campo museal amazonense, com suas iniciativas louváveis, com suas inovações – como o Museu Maguta, primeiro museu indígena do Brasil – bem como com as lutas, resistências e sonhos daqueles e daquelas que veem nos museus, antes de tudo, uma possibilidade para encontros, para a promoção de diálogos sobre diferentes tempos e com diversos sujeitos. Neste dia 24 de maio, finalizando a Semana de Museus, é ao povo dos museus e à sociedade que abraça estas instituições que eu quero reverenciar, não com um gesto acrítico e destituído de reflexão, mas justamente entendendo que abraçar os museus significa os pensar e repensar constantemente, lançando a eles questionamentos que frutificam em novas estratégias para atuação, que direcionam e redimensionam a sua função social no aqui e agora e também no devir.

Foto 6: Recepcionando público escolar no Museu Amazônico.

Neste atípico 2020, marcados que somos pela pandemia de COVID-19, abraço os museus, os seus profissionais e os seus públicos, pois serão todos e todas os responsáveis por levar adiante o legado de inúmeras gerações que nos antecederam no trabalho de memória e na fabricação de patrimônios. No pós-pandemia, temos diante de nós inúmeros desafios, alguns ainda insondáveis, mas, com a força de nossa criatividade, resiliência e, antes de tudo, resistência, seguiremos, juntos, construindo sonhos e abraçando museus!


 Fortaleza, 24 de maio de 2020.


Saulo Moreno Rocha

Museólogo do Museu Amazônico de 2017 a 2019

Museólogo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará

E-mail: smr.museologo@gmail.com

Instagram: @saulomorenor




O Movimento Abrace Um Museu está ocupando virtualmente o Blog Museus do Amazonas, na Semana Nacional dos Museus 2020, devido à pandemia Covid-19. 



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